Se comprar carro teve os seus desafios, a venda dava um filme indiano. Mas sem pessoas a dançar. O Toyota não se quis deixar ir sem dar luta.
Comecei por colocar um anúncio no Olx cá do sítio, o Haraj. Em 5 minutos já tinha mais de 10 interessados, alguns a garantir “eu compro já, apaga o anúncio, já o vou aí buscar, não vendas a mais ninguém”. Em teoria, isto é tudo muito lindo, na prática, vai-se a ver e afinal não é bem assim.
Apesar de ter mencionado no anúncio que o carro já tinha tido um acidente, e de ter referido que não sei falar árabe, a maior parte dos interessados só vê o modelo do carro, e o preço. Depois queixam-se de ser enganados, se nem as partes em letra normal eles lêem, quando mais as letras miudinhas…
Um dos interessados, muito determinado, perguntou se eu podia ir lá a casa dele mostrar o carro. Faz sentido, se o senhor quer comprar um carro é porque não tem. Mas como eu também tenho a minha vida, ou o senhor vem cá ou nada feito. O senhor veio. Não falava inglês, mas tinha ao telefone um amigo que falava. Gosta do carro, mas quer levá-lo primeiro a um centro de inspecção de usados, fica combinado às 20:30. Aparentemente, alguma coisa falhou na tradução, que eu estava no sítio das inspecções e ele ao pé da minha casa, a contar com a minha boleia. Foi lá ter de táxi. A inspecção custou-lhe 300SAR, e revelou que o carro já tinha tido um acidente. Sim, eu sei, estava descrito no anúncio. Ah, mas sendo assim, eu queria mas já não quero. É o que dá não ler bem as coisas, gastou dinheiro em táxi e numa inspecção automóvel para nada. Paciência, compradores há muitos, sobretudo naquela zona.
Toda aquela área é uma aglomeração de centros de inspecção, stands, tipo feira de Carcavelos com automóveis em vez de malas Luis Fuitton.
Um rapaz que lá estava, 20/30 anos, saudita, já tinha manifestado interesse no carro, pediu para conduzir. Tudo bem, uma pessoa não deve comprar um carro sem o experimentar. Só que afinal não foi para o experimentar, era para o mostrar a potenciais compradores, o rapaz era um intermediário, há muitos por ali. Passou o tempo todo ao telefone e, de regresso ao ponto inicial, começou a dança das negociações. Quando não há pressa em vender, a técnica do “ir embora” funciona sempre bem, e acabámos por acordar no meu preço. Com a ajuda de um intérprete, que este rapaz não falava uma palavra de inglês.
Vamos então ao gabinete do agente de transferências de propriedade automóvel, pensava eu. Não. Mais uma ronda por stands de potenciais interessados até, finalmente, lá chegar. O telefone do rapaz não parava, o rapaz não se calava.
No local, um grupo de árabes regateia, negoceia, mostra notas, zanga-se, argumenta, e a minha paciência esgota-se. Parece que desta é que é, vamos tratar da transferência. Pago 1000 agora e o resto amanhã. Não. Ou tudo agora, ou nada feito. Mais árabes a regatear, finalmente aparece um que fala bom inglês, além de um grupo de paquistaneses, também interessados na viatura.
Finalmente, fartei-me. Disse ao rapaz cala-te, já não te posso ouvir. Parece que o gajo levou a mal, cerrou os punhos, tu queres ver que isto vai dar merda? Não deu, que os outros o seguraram e gritaram “tu vê lá, não te desgraces!”
Se não foi isso que disseram foi parecido. Numa outra frente, os paquistaneses indagavam sobre a data da Fahas, o equivalente à nossa IPO. Tem que estar válida, para o carro poder ser vendido, isto aqui não é uma bandalheira, como em Portugal.
Resolvi então abandonar, mesmo não tendo uma consulta às 5. O Toyota discorda. Bateria descarregada. O rapaz árabe insiste, que vai enviar o dinheiro por transferência bancária, toma lá entretanto este maço de notas, o paquistanês traz os cabos para a bateria, o árabe tira os cabos, até que o paquistanês resolve de vez a questão: a Fahas caducou, e sem Fahas em dia não há transferência. Então, e só então, o árabe lá acalmou. Percebe que nem que o camelo espirre (o equivalente local ao “nem que a vaca tussa”) a venda pode ser feita agora, e lá deixa de se opor à ligação dos cabos de bateria. Vai lá tratar da Fahas e voltas cá amanhã, está bem? Está está.
O saudita que fala inglês aconselha-me a trancar as portas e a sair rapidamente, aquele seu compatriota não joga com o baralho todo (deve ser por isso que o jogo é proibido na Arábia) e pede desculpa pelo seu comportamento, que não reflecte a maneira de ser em geral dos sauditas. Pois, eu sei, não devemos generalizar, eu conheço lampiões que até são boas pessoas. E que é melhor colocar anúncio no Expatriates.
Quanto à parte de abandonar, a gorda ainda não tinha cantado.
Derivado a que aquilo é uma zona de intensa comercialização automóvel, há sempre reboques a carregar/descarregar viaturas, e um deles estava parado mesmo atrás do Toyota. Espera só um bocadinho, que é só carregar este BMW. Só um bocadinho. Ou dois. Finalmente o reboque liberta o espaço, mesmo na altura em que o rapaz regressa e tenta voltar a entrar no Toyota. Olha, não vai dar.
Passo seguinte, a Fahas. O processo desta vez é simples, limpo e eficaz. As viaturas formam fila para as cabines de recepção e pagamento, à entrada do hangar, segue-se para o interior onde entregamos o carro ao inspector, que depois trata do resto, só temos que ir para a recepção aguardar pelo resultado. Passado pouco tempo recebo um SMS com uma ligação para o relatório em árabe, tem uma série de vistos a verde, é bom sinal. Chega entretanto o inspector com as chaves do carro, o autocolante com o comprovativo da inspecção já está no pára-brisas, assunto arrumado, limpinho, limpinho.
Seguindo o conselho do Saudita, coloquei novo anúncio, desta vez no Expatriates, maior probabilidade de calhar falantes de inglês. Anúncio detalhado com o historial de acidentes da viatura, e aviso que só respondo a mensagens em inglês. Ainda assim recebi alguns contactos em árabe, e mais uns quantos a declarar disponibilidade para comprar imediatamente o Fortuner, pelo preço indicado, apaga já o anúncio que o compro (já aí estive, já fiz e tenho a t-shirt). E leste bem o anúncio? Não? Então vai ler. Ah, já teve dois acidentes, foi grave, os air-bags dispararam? Vai ler.
Finalmente, marquei uns quantos interessados, para a mesma altura, que eu tenho mais que fazer, a minha vida não é só isto e há uma nova temporada do Better Call Saul.
Entre as 19:30 e as 20:00, quinta-feira. Ah, mas eu venho de Dammam (tipo Póvoa de Varzim, para quem está em Lisboa). Até podes vir do quarteirão do lado, se estiveres lá entre as 19:30 e as 20:00 vês o carro, se não, não vês.
O primeiro interessado chegou às 19:35, viu, conduziu, indagou, fez uma oferta, demasiado baixa. Às 19:52 chegou novo interessado (o primeiro interessado ficou por lá, não vendas sem falar comigo). Tens 8m para ver o carro. Porquê? Porque eu disse que era até às 20:00. Mas onde é que vais a seguir? Vou comer uma bifana com uma imperial num bar de strip.
Estou a brincar, nas disse nada disso, disse só que já tinha um compromisso, não tenho que lhes contar minha vida.
Acabei por fazer um acordo com o primeiro interessado, amanhã vamos ao gabinete de transferências. Também pode ser feito pelo portal do governo (Absher), mas o promitente comprador achou isso demasiado complicado.
E no dia seguinte, 21H00, lá estamos junto ao gabinete, ainda está fechado. Volto a sugerir o Absher, até porque fica mais barato ao comprador. Só que toda a gente tem que ter o cadastro de multas de trânsito limpo, e o comprador tinha 3 multas pendentes. Pronto, lá temos que encontrar um MB para ele pagar. E mais um obstáculo, o comprador tem que depositar na minha conta o valor da venda, não quer que alguém lhe possa vir a perguntar pela sua origem. Quem nunca…
Adiante, voltamos ao gabinete das transferências, e isto parece-me familiar.
Yep, é o mesmo local onde tive a altercação com o saudita. Será que o gajo ainda aí aparece e vamos ter serão animado? Não vamos, tudo em ordem, e concretizou-se o negócio, dinheiro na mão, e finalmente o Toyota lá mudou de dono.
E pronto, se precisarem de dicas sobre como vender carros nesta terra, já sabem, não me perguntem.