Há tanto tempo a residir nas terras do Profeta, alguma vez chegaria a altura de escrever sobre religião. Entretanto meteu-se o Ramadão, de modo que calhou hoje. Não é uma tese sobre o Islão, há outros sítios onde vem tudo bem explicado. Isto é percepção, não é realismo, é impressionismo.
A primeira percepção sobre o papel da religião na sociedade saudita chega logo que se preenchem os impressos para obter o visto, indique o nome, o sexo, data de nascimento e a religião. Fica logo registada no cartão de residente (Iqama). Para turistas não é preciso, podem obter o visto aqui.
A segunda percepção vem do código de vestuário. Do feminino, que para os homens é apenas uma questão de moda ou preferência, thobe, shalwar kameez ou fato (de treino ou feito à medida em Savile Row).
Na praça de alimentação do antigo aeroporto de Istanbul, em escala para Riade, foi a primeira vez que as vi, ao vivo e a cores. Quer dizer, sem cores, tipo Mancha Negra, erguendo ligeiramente o niqab com a mão esquerda, levando a comida à boca com a direita. Também há aqui uma componente cultural, certamente, noutros países muçulmanos o hijab é norma (vide Irão), mas não a cor da roupa, abaya ou niqab. Há a obrigatoriedade da modéstia, e a exegese quanto à sua aplicação. Em caso de dúvida, a polícia religiosa (mutawha), dependente do Ministério para a Promoção da Virtude e Combate ao Vício, lá estava para para aconselhar, ralhar, deter se necessário. Há já alguns anos que passaram a ter apenas funções consultivas, a parte executiva passou para a polícia civil.
Quanto ao nível de prática, e tal como acontece em qualquer outra religião ou ideologia, há vários níveis de adesão, fanático, beato, devoto, adepto, simpatizante ou só lá vou para não ter que ouvir a minha mãe…
Não creio ter dos primeiros nas minhas relações, suponho que são os que se vêem por aqui de barba e cabelo tingidos de ruivo, parece que o Profeta afinal era irlandês. Pois, não é lá muito consistente com a sua aversão ao bagaço.
Os beatos fazem questão de mostrar como são crentes, chamam pelos colegas quando está na hora da oração, andam com o equivalente a um terço na mão, e uma marca na testa, da fricção com o tapete, de tanto e tão intensamente rezarem. Dizem as más línguas que afinal é raspado com pedra-pomes, não confirmo nem desminto.
Os devotos são mais discretos, mais cultos, sabem explicar os fundamentos e não costumam ter paciência para beatices.
Há colegas muçulmanos que nunca vi a rezar, ou de cabelo rapado (pelo que concluo que nunca foram em peregrinação a Meca). Suponho que são da mesma corrente que frequenta os bares do Barém, isto é tudo muito lindo desde que não me atrapalhe a existência. Adeptos e simpatizantes, podem ver um ou outro jogo na TV, mas não têm paciência para ir ao estádio.
Suponho que para as mulheres será semelhante, mais difícil de identificar. Provavelmente as fanáticas não pintam a barba e o cabelo de ruivo, e daí não sei, só deixam à vista uma ranhura para os olhos, tipo marco de correio gótico.
As devotas usam a clássica combinação niqab/hijab, e quando se nota alguma maquilhagem quer dizer que já estão a resvalar para adeptas/simpatizantes.
As mulheres não vão rezar à mesquita, mas têm salas de orações nos escritórios. Agora que penso nisso, há salas de oração também nos centros comerciais, para homens, mas não me lembro de alguma vez ter visto equivalente para mulheres, e já vi umas quantas a rezar nos corredores. Já se sabe como são as mulheres, vou só ali ao shopping comprar um niqab, e quando dão por elas já é maghrib.
À sexta-feira, é dia de ir à mesquita grande (juma) ouvir a pregação ao meio-dia. Só os homens, claro, que o almoço não se faz sozinho.