TUDO SOBRE RODAS - A COMPRA
O Toyota nunca recuperou totalmente do acidente do Natal 2020, pelo que, aproveitando as promoções do Ramadão, decidi trocar de carro.
Nesta terra há um mercado de carros em segunda mão muito diversificado, e de abundante oferta. Mas tendo em conta a forma como esta gente conduz, e a forma como tratam os carros, optei por um novo, com garantia, sem tablier alcatifado nem nódoas de shawarma.
Primeira constatação, aqui não há vendedores de automóveis, há informadores, mas já lá vamos. Os stands são semelhantes aos que podemos encontrar em Portugal, que as marcas têm tudo normalizado, e por dentro isto é igual em todo o lado.
Comecei pela Toyota, achando que poderia ter alguma facilidade na retoma, sábado de manhã, entrei pela zona das oficinas, perguntei se o show room estava aberto. Estava. É por ali à direita. E, de facto, estava. O que não estava era lá ninguém. Porque era o primeiro dia de Ramadão, e agora só depois das 21:00.
Adiante, visita a mais alguns stands, e os vendedores, ou não falam inglês ou, os que falam, tanto podiam estar a vender carros como mobiliário de escritório, o entusiasmo é o mesmo. Explicam o essencial, desconto não há, e se queres queres, se não queres há-de haver quem queira.
Enfim, escolhido o modelo, em função de uma criteriosa análise custo/benefício, incluindo vários itens (custo de aquisição/manutenção, desempenho…), escolhi o mais bonito, que a vida é demasiado curta para tabelas de Excel.
A parte mais complicada já está, agora é ir ao stand, depois do jantar (lá está, Ramadão) e nenhum vendedor falava inglês. Suponho que expatriados aqui não compram carros novos.
Tipicamente, um stand automóvel por estes lados tem uma série de balcões, de vários bancos, para tratar logo do financiamento. A maior parte deles exige transferência de salário, mas não o Saudi Fransi. E por sorte, o único com um funcionário fluente em inglês:
- Ora portanto, quanto custa o carro que quer comprar?
- Pois, ao certo não sei, que ainda não consegui falar com nenhum vendedor.
- É que isto costuma ser ao contrário, primeiro negoceia com o vendedor, depois é que cá vem tratar do financiamento.
- Acredito, mas não encontrei nenhum que falasse inglês.
Lá me encaminhou para um vendedor, que até falava qualquer coisita (segundo a experiência de um ex-colega, eles percebem sempre alguma coisa). E a coisa então foi simples, o carro é este, custa tanto, não há aquela coisa do “mas olhe que com este fica melhor servido, que os chineses até já fazem carros que não se desfazem ao fim de 100km, e são todos feitos na mesma fábrica, e estão muito bem equipados, só falta o lava-louça, e estes dourados no tablier até vão fazer inveja aos vizinhos…”
Foi só escolher a cor, e se queria estofos em pele sintética (nota: é plástico).
Fase seguinte, o financiamento, aqui pode pagar-se metade agora e metade daqui a 2 anos. E os papéis. Quais papéis? Extracto bancário dos últimos 3 meses carimbado pelo banco, cópia do passaporte e declaração salarial passada pela empresa. Simples, certo? Antes de chegar a casa já tinha uma mensagem a indicar que o crédito estava pré-aprovado.
A parte do extracto foi fácil, ir ao banco, e são 44 páginas. Nunca na vida um funcionário saudita iria carimbar aquilo tudo. Pois não. Carimbou a primeira e a última página, e chega.
Já a declaração da empresa foi mais complicada, por causa destas modernices dos grupos empresariais e optimização de recursos. A declaração salarial vem da empresa mãe, mas o meu cartão de residente menciona uma das empresas filhas. Não pode ser. Demorou mais uns dias (lá está, meteu-se o Ramadão) e vem a carta da empresa certa. Só que tem que ser certificada pela Câmara de Comércio. O gajo podia ter dito logo? Podia, mas não era a mesma coisa.
Mais um dia, mais um papel, mais uma certificação. Já está? Já. Ah, espera, o nome da empresa que está no iqama não é exactamente o mesmo que está na carta. E a Judean People’s Front não é o mesmo que que a People’s Front of Judea.
Mais um dia, e lá vem a ordem de compra, finalmente. Agora é com o stand. E não sei se já tinha referido, mas é Ramadão
Finalmente, recebo o telefonema, já pode ir levantar o seu carro. E eu vou. Dirija-se ao balcão de apoio ao cliente. São só 5m. Nunca é bom sinal quando eles começam a remexer em papéis e a fazer telefonemas. Uma hora depois, parece que não sabem do carro. Não é propriamente um comando de TV, que possa ter caído entre as almofadas do sofá. Chega daqui a uma hora. Ou duas, no máximo. Tá bem, tá bem… Liga-me amanhã, quando o carro aí estiver.
No dia seguinte, o carro é suposto chegar às 21:00, eu ligo-te às 20:30 a confirmar.
Ligou pelas 13:00:
- Afinal chega hoje, mas só às 12:00.
- Então só chega amanhã
- Não, hoje às 12:00
- Isso já é amanhã.
Tendo em conta que o stand está aberto até às 2 da manhã, para ele a coisa faz sentido. Fica para amanhã, e já perdi a conta aos inshallahs.
Mais um dia, volto a telefonar para o stand, o carro está lá, pronto para ser levantado. Quer dizer, pronto pronto ainda não, primeiro foi preciso lavar e tirar os autocolantes. Os locais não costumam tirar a etiqueta de eficiência energética que vem colada num dos vidros da porta de trás, pelo que o meu pedido lhes pareceu estranho. Mais ainda, quando eu não quis ficar com os papéis que cobriam os tapetes do carro. O rapaz segurava os papéis na mão, enquanto olhava para o colega com ar de “e agora, o que é que eu faço com isto”?
O resto do processo ainda demorou um pouco, até saírem todos os restos de autocolantes, e o pessoal segue muito o princípio do “já está bom”.
O que é semelhante a Portugal, é uma pessoa pagar por um carro novo, não é barato, e vem com o depósito vazio. E por aqui não é assim tão caro, sei lá, pelo menos meio depósito.
Finalmente, 3 semanas depois do início do Ramadão, há carro novo. Despachar o velho foi outro filme, já lá iremos.