O Ópio do Povo
Jidá, 6 de Dezembro de 2024, 18h52m. Aproximamo-nos da Cidade Desportiva Rei Abdullah, onde a partida entre as equipas de futebol Al Itihad e Al Nassr irá iniciar-se às 20h00m.
Já há algum trânsito, mas ainda não é difícil encontrar um lugar para estacionar no parque. Ao redor do estádio não há roulotes a vender sanduíches de courato, nem minis. Ainda, dêem-lhes tempo. Aliás, nem sequer há roulotes, apenas um ou outro ponto promocional, de snacks ou refrigerantes, para ir entretendo os adeptos.
O acesso está bem organizado, só ao atravessar o vomitório que serve o nosso lugar levamos com um flash da multidão, de amarelo, em cânticos coreografados. As cadeiras estão cobertas com plásticos coloridos, amarelos, vermelhos, pretos. Irão servir para cada adepto erguer o seu, e formar um desenho de belo efeito no estádio cheio.
No fim, Ronaldo marcou e o Itihad venceu, fiquei contente.
Quando cá cheguei, já o futebol entusiasmava os sauditas. O primeiro jogo a que assisti foi o derby da capital, Al Hilal vs Al Nassr, quando Jorge Jesus cá esteve pela primeira vez. Estádio cheio, muito entusiasmo, e tarjas declarando “Jesus is our leader”. Não, a ironia não me passou despercebida.
Há uma tira de Calvin & Hobbes, em que Calvin se pergunta o que Marx queria dizer com a frase “a religião é o ópio do povo”. No quadradinho seguinte, um balão regista o pensamento do televisor da família “significa que Marx ainda não tinha visto nada”. A televisão já foi substituída pelo scroll, o futebol toma conta do que sobra.
Todos os cafés em Riade, Jidá ou Taif erguem ecrãs gigantes nas esplanadas, e não é propriamente para que os clientes possam assistir ao Preço Certo em Riais. Quando não está a iluminar-se com um jogo de futebol, em directo ou em diferido, apresenta o que suponho ser a versão saudita dos Donos da Bola (era suposto eu agora fazer um trocadilho parvo arabizando os nomes dos comentadores portugueses, mas só me ocorrem 3, dois já morreram e o outro anda a contas com a justiça).
Entretanto, amanhã a FIFA irá anunciar a Arábia Saudita como o país organizador do Mundial de 2034, num processo que o The Guardian considera pouco claro, o que suponho que tenha surpreendido um total de zero pessoas, tratando-se da FIFA. As comemorações irão prolongar-se por 4 dias, continua a haver pão, continua a chegar o circo.
Ainda assim, esta febre futeboleira tem resultado a nosso favor, ler nacionalidade portuguesa no iqama costuma conseguir arrancar sempre um sorriso ao agente da autoridade mais trombudo, às vezes até se consegue a atenção exclusiva de uma médica saudita nas urgências (true story), graças ao talento de Cristiano Ronaldo para lidar com uma esfera de poliuretano.
Quanto à outra parte mais folclórica do desporto-rei, nunca li nada aqui sobre confrontos entre claques, petardos ou very-lights, assaltos a áreas de serviço ou invasões de academias. Nesse aspecto parece que ainda estão um pouco atrasados, espero que fique tudo pronto para o Mundial 2036.